segunda-feira, 8 de novembro de 2010

O GATO QUE GOSTAVA DE CENOURAS.

Coisas que nem a religião nem a educação podem mudar.
O telefone tocou. Queriam uma entrvista sobre o livro O gato que gostava de cenouras. Não entendi o nome da revista, estou ficando meio surdo. Por vergonha, não pedi que repetissem. A entrevista. A entrevista começou...
Gato gosta de peixe, de rato, de passarinho. Não gosta de cenoura. Numa terra de gatos, um gato que gostasse de cenoura seria uma aberração, vergonha para os pais, motivo de chacota e zombaria na escola...
O nome dele era Gulliver. Gullinho. Seus pais não sabiam de seu gosto por cenouras. Comê-las era um ato secreto. Seus pais só se preocupava com o fato de que ele não comia os deliciosos ratinhos recém-nascidos, os pardais saborosos, os peixes cheirosos que lhe traziam. Gullinho era diferente. E isso fazia seus pais sofrerem, porque os pais mais desejam é que seus filhos sejam iguais aos outros.
O fato era que os pais de Gullinho ignoravam que ele, escondido, comia a comida proibida. A mãe acabou por desconfiar das incursões secreta do Gullinho e disse ao pai que seria melhor segui-lo para ver onde ele estava se metendo. Foi o que o pai "sogateiramente" fez. Gullinho caminhava com cuidado olhando para todos os lados para ver se estava sendo seguido. Andou até chegar ao sítio do senhor Joaquim. Havia canteiros com todos os tipos de hortaliça. Foi até o canteiro de cenouras e - oh! Coisa horrenda para um pai gato - começou a comer cenoura. O pai quase morreu de susto. O filho, que ele sonhara tigre, não passava de coelho. E chorou amargamente...
Foi procurar auxílio. Um padre ameaçou Gullinho com o inferno. "Deus é gato, Deus ordenou que comêssemos peixes, ratos e passarinhos. Comer cenoura é pecado mortal! " Não adiantou, Gullinho continuou a vomitar peixes ratos e passarinhos...
Levaram-no ao psicanalista. A análise durou vários anos. Mas o que o Doutor Gatan lhe dizia com linguagem complicada não alterava o seu gosto: continuava a gostar de cenoura...
Foi então que um professor da escola entendeu o drama do Gullinho. Chamou-o para uma conversa: " Nosso destino está escrito nas células do nosso corpo num "chip" pequeno chamado DNA. Esse "chip" já está no feto. Determina a cor do seu pelo, dos seus olhos, se você vai ser menino ou menina, daltônico ou não, canhoto ou destro. Você nada pode fazer para mudar as ordens que estão no seu "chip". E acontece o mesmo com o nosso gosto por ratos ou por cenouras... Não é pecado como o padre disse porque foi o DNA que o fez assim... Não é resultado de educação e nem pode ser curado, como se fosse uma doença, porque o DNA que o fez assim... Igual ao daltonismo.
Gulinho olhou em silêncio para o professor e pela primeira vez entendeu tudo. Sentiu que um enorme peso fora tirado de cima dele. Entendeu então que ele podia gostar de cenoura porque fora o DNA que o fizera assim- e ninguém tinha nada com isso.
RUBEM ALVES
Educador e escritor

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