quarta-feira, 29 de maio de 2013


Mora uma festa de junho dentro de mim 
*Fátima Abrantes

Desde setembro de 1985, o finalzinho de maio me enche o coração de saudade. Uma saudade que se prepara para festejar: ¨ Oh, Antônio, que foste na terra...” Uma saudade que conta os dias, como os dedos crédulos de todo vieirense que definem as contas que faltam no rosário, para que a ladainha seja cantada, para que os balões ganhem o céu, para que Chico Fogueteiro ateie fogo nas girândolas, para que a banda toque “ Royal Cinema” , para que Padre Batista aclame: “Viva Santo Antônio! Viva o povo de Deus! “.

O Parque Brasília roda, silencioso, esperando a banda passar na rua de cima, para só então ligar a difusora, chamando as crianças para a roda gigante, o carrossel e o algodão doce. O Pavilhão de Zé Grilo logo fica apinhado de gente.Tem seresta, tem festa do povão, tem catorzão!

A multidão percorre o caminho até a praça, seguindo as bandeirinhas de papel de seda colorido que ligam o céu às ruas; as ruas às calçadas. As vestes marrons dos homens e mulheres de promessa são guardadas para o dia seguinte. Penitente e profano, o vieirense reza e dança em nome da fé e convida os seus para junto de si: aqueles que vão e voltam e aqueles que foram para nunca mais voltarem. 

São aqueles que nunca voltam que não saem de dentro de mim nesses dez dias anuais da Festa de Santo Antônio. Durante esses anos fui guardando-os todos pelo nome, pelos momentos vividos, pelo achar graça da cidade nos festejos ao Santo Padroeiro. Relembro os preparativos, as galinhas engordadas, seus filhos esperados, suas casas pintadas, suas redes novas retiradas do baú, seu corte de pano levado à costureira, seus sapatos renovados por Juvenal. E aí eles afloram em mim mais vivos do que nunca pelas ruas da minha memória.

Dentro de mim mora Amélias que espiam os balões subirem; mora uma Terezinha de ouvidos atentos no altar escutando um Edmilson na missa dos filhos ausentes. Dentro de mim mora um em Toá, um Verim marchador de bandas a bater palmas; mora um Arimatéia simples, uma Luíza e duas Ritas novenando sorrisos na calçada; mora um Sebastião gozador no balcão de mercearia, um Hugo sonhador; mora um Vicente pensador num banco de forquilha, mora uma Maria... Do Céu com portas abertas, mora um Guilherme flamenguista com jeito de passarinho, mora um Joaquim e Alice às sombras das castanholas; uma Delfa Nicolino, um Anízio Leocádia, um Domício querubim.

Na curva da pracinha do orelhão, um Beu violão, um Messias; uma Losmina e um Zé, no silêncio respeitoso de um bar do calçadão.Um Antônio e uma Denise no subir da ladeira da minha saudade. Mora em mim uma Dadinha, um Elói, uma Lourdinha e um Bebé: os quatro, juntinhos, bodeguinhas do meu lembrar! Mora uma Odete cheirando a talco, um Raimundo, um Hermógenes fardado em continência à uma Joaninha. Uma história de João e Maria... 

Dentro de mim moram Chicos: um da serra, que já nascera anjo, um sábio que ensinara a ser e um de puro ouro.. Coisas de Vidal, de Sampaio e de Vaqueiro! Palavras simples de Anas, da luta das Nilzas, de um JoseMar, de um Israel sem Kipá, de Helenas sem Tróia, das artes de Josué, de engenhos Nô, de alquimias culinárias das Franciscas, da arte cuidadosa do ensaboar das Biricas e Marias, dos Geraldos e Paulos dançarinos, de Lúcia: “ Íria” da fé vieirense.

Mais uma festa de Junho.E lá eles vão estar: pondo fitinhas coloridas no altar de Santo Antônio, vestindo de renda o Menino Deus, caminhando descalços na procissão, esperando a alvorada, escutando nossas “preces ardentes de amor”. Em mim, transborda saudade, feito a sangria desatada do açude do Junco quando a chuva cai, chamando a todos para assentarem-se, agradecidos e vislumbrarem a ressurreição, lá do alpendre da casa de Geraldo...quando tudo é água transformando em “Barro” a poeira do meu sertão.


Sei bem que a sua saudade não é diferente da minha, que dentro de cada um mora uma lembrança, uma saudade, um momento que aqui não registrei. Seu registro aqui será como um abraço dos filhos ausentes.

Nenhum comentário:

Postar um comentário